A maior mudança no sistema tributário brasileiro em décadas está batendo à porta — e deve alterar profundamente a dinâmica de fabricantes, concessionárias e toda a cadeia automotiva. Para entender o impacto real da Reforma Tributária, a ABRAJEEP Press conversou com o advogado Dr. Alexandre Goiana, sócio-fundador do AG Sociedade de Advogados, que não hesita em classificar o momento como um divisor de águas. “A reforma representa a mais ambiciosa reorganização fiscal da história recente do país”, resumiu.
O ponto central da transformação é a substituição de cinco tributos — PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS — por dois novos impostos que formam o IVA Dual: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). A promessa é de simplificação, mas os efeitos no setor são profundos. Para um segmento que representa cerca de 20% do PIB industrial brasileiro e que gasta aproximadamente 1,2% do faturamento apenas com burocracia tributária, a mudança é estrutural.
Segundo Dr. Goiana, as concessionárias terão de revisitar completamente seu modelo de gestão financeira. “Haverá uma mudança de estratégia, já que créditos de CBS e IBS substituirão a atual tributação monofásica sobre veículos e peças”.
O fim de benefícios e o novo desenho tributário
Um dos pontos mais sensíveis é o encerramento dos benefícios fiscais de ICMS, que há décadas moldam a competitividade entre estados. “A unificação dos tributos estaduais e municipais no IBS limitará a autonomia regional e extinguirá reduções que hoje diminuem o preço do veículo novo em diversos estados”, alertou.
Também chega ao fim a isenção de PIS/COFINS sobre comissões recebidas nas vendas diretas — operação cada vez mais central na rentabilidade das revendas. A CBS incidirá sobre essas comissões, encarecendo o custo operacional das concessionárias.
O IPI, por sua vez, terá alíquotas zeradas, exceto para produtos fabricados na Zona Franca de Manaus, enquanto o Imposto Seletivo, apelidado de “imposto do pecado”, passará a incidir inclusive sobre veículos. “Mesmo com a modernização e a chegada de modelos menos poluentes, o setor foi colocado no mesmo patamar de cigarros e bebidas”, criticou o especialista.
Custos, importações e a era da não-cumulatividade plena
Com a projeção de que a alíquota combinada de IBS e CBS pode alcançar cerca de 28%, parte da indústria — especialmente fabricantes de autopeças — deve sentir aumento de carga. Por outro lado, a não-cumulatividade plena deve ampliar o volume de créditos tributários disponíveis.
As importações também entram na nova lógica: IBS e CBS incidirão sobre produtos importados com a mesma alíquota aplicada no mercado interno, com a arrecadação destinada ao estado onde o bem for entregue ao consumidor final.
Como concessionárias devem se preparar
Para atravessar a transição sem riscos, o diagnóstico fiscal é essencial. “Cada concessionária deve mapear sua realidade por operação e localização, já que as estratégias regionais deixam de existir a partir da nova regra”, recomendou Goiana. Ele defende a criação de comitês internos multidisciplinares e o fortalecimento das políticas de compliance, além de registro minucioso de todas as operações — exigência reforçada pelo modelo de tributação no destino.
Outro ponto de atenção é o Split Payment, mecanismo que separa automaticamente o imposto no momento do pagamento eletrônico. “O Split Payment impactará severamente o caixa rotativo das empresas no curto prazo”, ressaltou.
Preços ao consumidor: aumento, redução ou estabilidade?
A resposta ainda depende de variáveis não definidas. Hoje, a carga tributária brasileira sobre automóveis é desproporcionalmente superior a padrões internacionais: 63% mais alta que a europeia, 200% maior que a japonesa e 285% acima da americana. A reforma promete alíquota média de 28%, mas o Imposto Seletivo pode alterar o cenário.
Em um ambiente ideal, veículos mais eficientes poderiam ficar mais baratos. Porém, o especialista faz um alerta: “Custos de adaptação, possível elevação do Imposto Seletivo e o efeito do Split Payment podem resultar em aumentos generalizados”.
Elétricos e híbridos: avanço ou retrocesso?
Apesar de o programa Mover incentivar tecnologias mais limpas — com IPI zero para modelos sustentáveis que cumpram critérios ambientais — a inclusão de elétricos e híbridos no Imposto Seletivo contraria a lógica global. “É uma contradição grave: veículos de baixa emissão foram incluídos entre os produtos penalizados, enquanto caminhões a diesel ficaram de fora”, criticou.
Oportunidades existem — mas exigem estratégia
Mesmo em meio às incertezas, há espaço para otimização fiscal. A possibilidade de novos créditos, a extinção da substituição tributária do ICMS e os créditos presumidos da CBS para regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste até 2032 criam oportunidades relevantes.
“Haverá espaço para reorganização logística e tributária, mas será necessária análise jurídica rigorosa, simulações e documentação impecável”, concluiu.
Às vésperas de uma transformação histórica, concessionárias e fabricantes precisam se preparar para navegar em um ambiente de regras reescritas — e onde eficiência, conformidade e estratégia serão determinantes para a competitividade.